De: Luciana
Para: Maria Marlene
Querida mãezinha,
Há muito tempo que não nos vemos e a saudade tem sido uma constante nos últimos seis anos. Entendo perfeitamente que não pode estar aqui, mas é impossível não desejar que estivesse. Imagino que muita coisa tenha mudado para a senhora desde que o tempo deixou de ser tempo, a fome deixou de ser fome, o sono deixou de ser sono, o corpo deixou de ser corpo. Sua luz, por sua vez, deve estar mais intensa do que nunca. Ou pensa que não percebi como iluminou meu caminho nos primeiros e desesperados meses após sua partida? Por meses a fio me senti uma calçada esburacada do centro da cidade num domingo à noite. Arrebentada e abandonada. É terrível ser órfã. Nunca pedi piedade a ninguém, mas por muitas noites senti pena de mim mesma. Varei madrugadas inconsolável.
A última vez que nos tocamos acho que foi quando fui passar óleo de amêndoas nos seus pés inchados. Ai minha pequena, às vezes penso que poderia não ter arredado o pé daquele hospital, ter aproveitado mais nossos últimos momentos juntas. Se ao menos imaginasse a saudade tsunâmica que viria depois e que seria para sempre.
Bom mãe, sem lamentações aqui que não quero nos entristecer. (Tristeza não existe aí onde a senhora está né mãe?). É, não quero me entristecer. Lembra que nos despedimos horas depois de termos comemorado meus 30 anos? Pois hoje estou com 36. Se visse as raízes brancas de meus cabelos com certeza me daria uma bronca, diria que era desleixo. De resto mãe, acho que melhorei.
Sou mãe também, como já deve saber. E a senhora mãe, é avó não só de duas, mas de seis netos. Depois da Nati e da Gio vieram a Luiza, a Lala, o Santi e o Bruninho. Um mais adorável que o outro mãe, sem exageros. Ali é tudo criança em amor puro. Nati, sua Nati adorada, vai fazer 15 anos em duas semanas. Ela tem muito da senhora, tanto no jeito de falar e agir, como fisicamente. É muito magrinha e muito fofa. Sei que sente sua falta até hoje.
Minha madrinha então eu sei que sente sua falta imensamente. Dedica-se a cuidar do vô Otávio, que cada vez tem mais paúra da palavra morte, e da vó Leonor, que aliás está muito frágil, muito velhinha agora. Ano passado quase morreu comendo uma costelinha. Foi um dos maiores sustos da minha vida.
Vira e mexe estou com os meninos ou com alguém que te conhecia e comentamos como a senhora seria uma vó babona. O Bi definiu bem como ficamos depois de sua partida. "Nossa família se divide em AM e DM" (antes de Marlene morrer e depois de Marlene morrer). Em alguns momentos achei que não sobraria pedra sobre pedra, mas para minha felicidade sobrou muito sim.
Parei de chorar à noite chamando pelo seu nome. E há muito, muito tempo mesmo não percebo sua presença. Finalmente te deixamos descansar, não é mesmo? Acho que uma das últimas vezes que senti que estava perto de mim foi quando fui internada no hospital com risco de perder os pequenos ao final do terceiro mês de gravidez. Foi mesmo preciso que estivesse ali, ao meu lado, naquele sofá preto, para eu me acalmar. E deu tudo certo.
Entendo que tenha cumprido sua missão em nosso mundo e tenha partido. Entendo que é impossível saber quando nos veremos de novo. Devo admitir mãe que agora não tenho pressa. Se a senhora está bem aí e não conta as horas no relógio, acho que esse encontro pode levar uns 50 anos, não? Eu serei uma velhinha de 86 que morrerá logo depois de colocar mais água com açúcar para o beija-flor no pote com flores amarelas de plástico. Lala e Santi terão 52 anos e espero que respeitem até o fim meu desejo de viver independente, no meu canto, teimosa que sou. Lala ainda vai dizer: "Voce ainda falava de sua avó Leonor né mãe, mas tá igualzinha".
É possível que eu tenha netos ou até bisnetos. Não gosto disso de projetar meus sonhos nos filhos, quero respeitar seus desejos, mas em dado momento direi de forma direta e objetiva: "Quero ser avó".
Serei uma velhinha de 86 anos, mas de formas sólidas, bem robusta. Terei viajado pelo mundo até meus 70 e poucos. Meus filhos irão querer me enterrar ao seu lado ou talvez achem melhor enterrar-me ao lado do meu amor, com quem passei 30 bons e amorosos anos de minha vida.
A fada tatuada no meu braço terá as asas caídas, mas manterá a cabeça erguida. A rosa vermelha com os nomes de Laura e Santiago terá perdido a cor, terá murchado, mas como talvez não me lembre bem como era originalmente direi que é um lírio branco.
A outra tatuagem, atrás da nuca, que ainda não tenho mas posso vir a ter, será das mais intactas, dado que o pescoço na parte de trás tende a ficar ainda mais rija conforme os outros membros cedem.
Vou ficar um pouco triste porque meu pedido para doar todos meus órgãos talvez não possa ser atendido. Se ao menos tivesse morrido antes poderiam ter mais serventia. Então tudo bem, não salvem minhas moelas, minhas pelancas, meu cabelos de milho. Depois de 72 horas podem cremar a velhinha aqui e jogar minhas cinzas em algum lugar que ainda vou decidir. Levando-se em conta esse cronograma, tenho tempo.
O mais engraçado de tudo mãe é que quando eu for uma velhinha de 86 anos, a senhora ainda vai estar linda e jovem do alto dos seus 53. A senhora terá praticamente a idade de sua neta se formos pensar bem. E que Lala não nos ouça, mas duvido que ela consiga chegar a essa idade com o corpinho tão esguio como o seu. Lala puxou a mim e eu não puxei à senhora, definitivamente.
Aos 86 anos terei perdido muitos amigos, tios, primos, mas Deus que me ajude que não tenha perdido nenhum filho. Ou que me ajude para que até lá eu consiga entender melhor essa coisa doída de morte.
Eu não morri aos 27 anos como achava. Agora também não tenho a mínima pressa.
Aos 86 anos darei água com açúcar ao beija flor e me sentarei para tomar um chá. Servirei duas xícaras, pois sei que a senhora irá me buscar. Meu pai vai estar me esperando lá, para onde iremos as duas. Minha madrinha também estará lá, meus avós. Enfim, vai ser uma festa só. Gente que não via há anos vindo me abraçar. O melhor disso é que sei que não haverá ninguém chamando desesperado pelo meu nome entre os mortais. Quase todo mundo que me conhecia a fundo também já terá morrido mesmo. Os que ficarão terão uma leve idéia do que fiz na vida e pensarão: "Viveu muito, morreu tranquila". Aos 86 anos uma pessoa não morre, descansa. Quando uma pessoa de 86 anos parte ela deixa aquele quentinho no peito da gente. Menos dor e mais saudade.
Por isso, tento entender a lógica de ter partido tão cedo mãe. Mas não existe a tal lógica. E no caso de minha hora não ser essa sonhada, não fico olhando o passado, de nostalgia paralisada. Se tem alguém que vive bem essa vida mãe, esse algém sou eu. O motivo dessa carta é que me ocorreu que estaria orgulhosa de ver como tomo conta dos seus netos, como eles são bacanas, como meu coração é mais leve, como virei mulher, como faço bem as compras no supermercado, capricho na sopinha para as crianças e os ensinei a orar antes de dormir.
Mãe, me desculpe se me estendi demais na prosa. Mas é que ou fazia isso ou saía falando sozinha pela redação como uma l0uca ou pegava o telefone e fingia que estava falando com voce. Tudo isso quando poderia ter ficado na primeira linha: querida mamãe tenho muita saudade. Um dia de novo nos veremos. Era só mesmo para não te deixar preocupada e dizer que estou bem.
beijos da sua filhinha que te ama demais e incondicionalmente.
Lu
(junho de 2007 - cinco anos sem minha mãe)
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